sexta-feira, 9 de julho de 2010

Eu, Feiticeira, me confesso ladra... mas apenas de textos que me espelham...



(Também)
SOU EU

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,

Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,

Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.


Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.


Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...


As maravilhosas poções de Álvaro de Campos...

2 comentários:

  1. Feiticeirinha,
    Fernando pessoa é sem dúvida um dos grandes nomes do universo literário de Portugal e do Mundo. Longe de mim do ponto de vista ideológico( embora, estudos recentes de poemas inéditos nos mostrem uma personalidade bem mais crítica face ao Estado Novo que, então, se impusera ao País)reconheço que é um poeta ímpar, cuja grandiosidade fez dele um Património riquíssimo, de reconhecimento universal.
    A sua capacidade criativa e a sua imaginação eram tão grandes e tão diversas que o seu “eu” se dividiu em outros “alter” capazes de abarcar todas as “imposições” de todos os seus sentidos. Assim, criou outras personalidades com realidades identitárias próprias: nome, aspecto físico e psicológico, profissão e mesmo o modo de olhar o mundo. E fê-lo com uma mestria tal que, perante os textos, tu percebes que identidade é aquela que, enquanto sujeito poético, está diante dos teus olhos.
    Na verdade, Feiticeirinha, tu lês “Eu sou um guardador de Rebanhos” e dás de caras com a ruralidade e o amor pela Natureza de Alberto Caeiro, que, quase analfabeto, era olhado por Fernando Pessoa como o “seu Mestre”.
    Já a leitura da “Ode Triunfal” (como eu me lembro de Sampaio Ferreira e de Oliveira Ferreira, quando a leio!) ou da “Ode Marítima” mostra-te a energia do engenheiro naval Álvaro Campos, que agarrou, sem peias, a apologia do desenvolvimento industrial, apesar de, volta e meia, deixar escapar a nostalgia sentida pelos seus tempos calmos de infância…como que adivinhando o futuro.
    E se leres “Vem sentar-te comigo, Lídia”, aí, Feiticeirinha, tu vais perceber o “filósofo” formado em medicina, consciente da relatividade das coisas e dos momentos e consciente da efemeridade da vida. Epicurista e hedonista, Ricardo Reis é um defensor do “carpem Diem” e do prazer momentâneo… mas que, na minha opinião, sofre. E sofre estoicamente…considerando que a verdadeira felicidade é algo que nunca se atinge.
    Estas identidades(estes “alter-eu”) e muitas outras menos estudadas (Bernardo Soares, por exemplo, e o seu “Livro do Desassossego” – de que te deixo este minúsculo excerto: "O coração, se pudesse pensar, pararia.") e conhecidas, resultam da incapacidade de trancar dentro de uma Alma tão grande e tão dividida todos os sentidos que se movem simultânea e permanentemente e de todas as maneiras.
    O poema que tu escolheste “Sou Eu” cabe direitinho na gaveta da fase catalogada como intimista/pessimista de Álvaro de Campos, fase em que o sujeito poeta, incapaz de ver realizadas as suas pretensões, nomeadamente a de Amar, se deixa arrastar pelo cansaço, pelo desânimo e pela frustração.
    Sentido-se um marginal e um incompreendido, onde o conflito entre a realidade e o poeta é recorrente, aproxima-se, então, de Fernando Pessoa, ortónimo (“O poeta é um fingidor”).

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  2. Feiticeirinha, peço desculpa... não consegui fazer melhor.
    Bjinhos

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